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Trajeto da montanha

LARVA

NEVASCA                                                                                      

 

 

Solstícios de gelo,

Crepúsculos de névoa desfraldando insígnias.

Tinhas o brilho hierático das lavras,

O halo rubro dos campos de centeio.

 

Trazias o símbolo dos vivos, o corpo intocado, o gesto severo,

A alma cheirando a ouro e esterco.

 

Tive, outrora, um prenúncio de incêndios, uma pura

Ideia do tempo,

Aquele hausto de alvorada que cintila nos olhos dos insanos:

 

Esse vislumbre era uma grinalda a destilar madrugadas.

 

Tudo se foi. A cantiga dos corpos. O alento. A fresca floração.

Meu coração está a sós sob o denso nevoeiro.

 

 

 

 

NOITADA                                                                                 

 

 

Tinhas o mesmo cheiro de alfazema das minhas roupas de infância,

Recendendo a frias noites de maio e a estrelas vistas do alpendre.

Quando tirei teu vestido, o aroma entranhava-se ali, na tua pele, 

E estar contigo era como abrir um livro de memórias. 

 

 

 

 

CASA DA INFÂNCIA                                                                        

 

 

No limiar da noite,

Havia os corpos

Fremindo debaixo das cobertas,

Na candura do leito.

Havia a casa, silenciosa de gritos,

A penumbra encobrindo segredos,

Havia a louça a estalar na cristaleira.

 

O mogno frio alimentava promessas,

O leite, no jarro, era um denso entremear de irrisões.

 

Era assim que passávamos os dias,

A tecer engodos na muda quietude da oficina,

A rodear a mesa com nossa fome e nossa impaciência.

 

As cadeiras se incendiavam de relâmpagos,

Os discos, nas vitrolas, arranhavam a nossa ingênua credulidade.

Éramos hóspedes de uma outra vida,

Uma vida que corria nas artérias do sono,

E não havia palavras para expressar o vazio,

E não havia palavras para dizer a alma das coisas.

 

 

 

 

MINA                                                                                       

 

 

Crava-se a flor na laje das criptas,

Testemunha do sono indelével dos solstícios.

A vida, aqui, por um fio, gota a gota,

Adestra a dureza do granito.

 

 

 

 

 

TEMPO CLARO                                                                                  

 

 

Hoje o sol voltou a brilhar sobre a muda tristeza das casas.

Quero sair às ruas concretas, pisar as ásperas pedras do passeio,

Ver a vida diária nos olhos de todos.

Esse é o mundo que almejo, o rigor do asfalto e a regularidade dos carros,

Os contratempos do trânsito e a morosidade das filas de banco,

O prenúncio das contas a pagar e o fim do mês que se aproxima.

Não tenho mais nada, não abrigo sequer o desejo de ser único.

Basta de febres noturnas e de etéreas promessas:

Minha vontade agora é o desejo de todos,

Minha alegria é simples como a do sol nas calçadas.

Aqui estou: saio a passeio, entro num bar, sento-me e peço o prato do dia,

E a meu lado três operários concretos, metidos em uniformes de trabalho,

Discutem coisas reais, como a precisão das ferramentas ou o diâmetro das tubulações.

E eu, que nada percebo de suas inventivas, ouço em silêncio, maravilhado,

Enquanto me servem o almoço (o bacalhau à moda do Porto, à minha frente, também me parece bem concreto).

Depois pago, satisfeito,

E saio de novo entre os passantes

E por um momento imagino, de facto,

Que sou como todos, e sigo com eles, sorrindo,

Porque não dou mais conta de mim. 

 

 

 

 

 

COZINHA DO CAMPO                                                                 

 

 

Olho as frutas num cesto,

Recém-colhidas,

Esquecidas num canto da cozinha:

Cachos de mourisca, maçãs verdes, nectarinas,

Cerejas róseas como rubis.

As moscas se apinham em torno,

Zumbem numa dança teimosa,

E já não as espanto.

 

Perdi-me na força das coisas,

No ímpeto do meu próprio gesto de incerteza,

E toda coragem foi em mim plena ruína.

 

Agora sento-me aqui, a contemplar as frutas que apodrecem,

E enquanto a morte avança sobre o meu corpo indiferente,

Não tenho sequer a gana de prová-las.

 

 

 

 

LARVA                                                                                                       

 

 

Eu sei. Há pouco tempo para as rosas. Entre

Um e outro sopro da tormenta,

Vive-se o breve intervalo do estio.

Mas sei também que um dia,

Desfraldados os estandartes da batalha,

Dirás: sou exatamente o que desejo.

 

Abraça o teu risco. É o que tens, agora: um sobressalto,

O despertar do vento a estalar nas cortinas.

 

Pois o que é o homem, além da sua falta? 

Um corpo em febre e uma herança de símbolos.

 

Fora o escopo do teu gesto, há tão somente o vazio

Do que intentas: teu abismo e teu projeto.

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